Diplomacia brasileira quer acabar com rótulo de masculina, branca e de pai para filho

A diplomacia brasileira começou a fazer uma série de movimentos para ampliar a diversidade em seu quadro de servidores

Foto: Agência Brasília
Tatiana Cavalcanti
São Paulo, SP

Para tentar espelhar de forma mais representativa a realidade de um dos países mais heterogêneos do mundo, a diplomacia brasileira começou a fazer uma série de movimentos para ampliar a diversidade em seu quadro de servidores. A distância entre o objetivo e a realidade, porém, ainda é longa.
O perfil predominante na carreira, segundo especialistas ouvidos pela reportagem, é o do homem, branco, de classe média alta e que, em boa parte, já tem algum conhecimento prévio quando presta o concurso público, herdado, em partes, de algum parente que trabalhe na área. Isso desde os tempos do barão do Rio Branco (1845-1912), patrono da diplomacia.
A soteropolitana Rafaela Seixas, 35, mulher, negra e sem relação familiar com o setor, é uma exceção na carreira, na qual a presença feminina representa apenas 23,1%. Em abril de 2022, o quadro de 1.540 diplomatas brasileiros se divide entre 356 mulheres e 1.184 homens, de acordo com o Ministério das Relações Exteriores. O número é mais equilibrado em outros cargos.
Atualmente, Rafaela atua como segunda-secretária em Brasília. Ela ingressou na carreira em 2016 por meio do Programa de Ação Afirmativa do Instituto Rio Branco, em que conquistou uma das bolsas oferecidas anualmente a candidatos negros e pardos.
Ela estudou em escolas particulares de Salvador com bolsa e acabou optando pelo direito para entrar em uma universidade pública, já que sua mãe, Bernardete, 72, não tinha dinheiro para pagar uma faculdade de relações exteriores. No curso, um professor da área de relações internacionais posteriormente assinou uma carta de recomendação para uma bolsa de intercâmbio em Paris.
“Juntei dinheiro por três anos para bancar a estadia. Até vendi caldo de sururu na praia, ao mesmo tempo em que estudava francês de forma autodidata.” Hoje, Rafaela fala quatro línguas e estuda alemão e árabe.
Ela afirma que deseja ver o quadro de mulheres negras aumentar. Mas não há cadastro oficial dos funcionários baseado em critérios que vão além de gênero. Em nota, o Itamaraty informou que “a legislação brasileira veda aos órgãos públicos a exigência de que servidores compartilhem informações sobre raça, etnia, cor ou orientação sexual”.
Mas dados da pasta mostram que 56 candidatos que se identificaram como negros ingressaram na carreira diplomática entre 2002 e 2021. A cifra soma os 20 bolsistas do programa de ação afirmativa, implementado em 2002 na gestão Fernando Henrique Cardoso (PSDB), e os 36 aprovados desde o início da lei de cotas, concebida em 2015 no governo de Dilma Rousseff (PT), que reserva 20% das ocupações oferecidas a candidatos negros em todas as fases do concurso.

PERFIL DO DIPLOMATA

Por falta de dados empíricos, um estudo encomendado pela ADB (Associação dos Diplomatas Brasileiros) no fim de 2021, que deve ficar pronto no final deste ano, pretende mapear a diversidade na carreira diplomática do país em aspectos como gênero, raça e orientação sexual.
“Não dá para dizer se há diversidade sem informações. O objetivo desse megaestudo é fazer correções de rumo, já que sem dados estamos falando no ‘chutômetro’”, afirma a embaixadora Maria Celina Azevedo, presidente da ADB. “A diversidade deveria ser um reflexo da sociedade.”
Mesmo reconhecendo um avanço notório recente, ela vê o número de mulheres, especialmente negras, ainda abaixo do ideal — segundo o IGBE, 56,2% da população se declarou preta ou parda em 2019.
A diversidade, na visão da embaixadora, daria o benefício até de manter a paz. “Tudo o que enriquece numa troca de experiências dá aporte para representar seu país de forma mais precisa. É um intercâmbio para a sociedade. A diversidade possibilita ampliar os diálogos e, consequentemente, ter menos guerras.”
Filha do embaixador Jayme Azevedo Rodrigues, Maria Celina seguiu os passos do pai no início dos anos 1970. Mas o então diplomata, que oferecia aulas a uma aluna que tentava entrar na profissão, deu um sermão na própria filha quando soube da decisão. “Ele me explicou que esse é um mundo machista. Eu disse que tinha certeza da escolha, e ele passou o fim de semana me falando sobre a carreira.”
As mulheres foram proibidas de atuar nesses cargos a partir de 1938, devido a um decreto de Getúlio Vargas. A medida foi abolida após uma ação judicial da candidata Maria Sandra Cordeiro de Mello, em 1953, que obteve o direito de servir como diplomata. Desde 1954, o concurso é aberto a todos os brasileiros, sem distinção de gênero -o que inicialmente não representou mais diversidade.
De acordo com o diplomata Audo Faleiro, o quadro do Itamaraty conta com profissionais de classe média alta, em sua maioria, em razão das exigências de ingresso na carreira, que demanda investimento em cursos preparatórios e materiais de estudo. “As pessoas de origem mais humilde têm mais dificuldade de competir em pé de igualdade [com candidatos de escolas particulares, por exemplo] num concurso que tem prova de línguas estrangeiras, história, geografia e noções de direito.”
Ele destaca a importância de ações como a concessão de bolsa e a lei de cotas para aumentar a diversidade e afirma que, no caso de gênero, ainda que a competição seja equilibrada no concurso, só cerca de 25% das mulheres são aprovadas na entrada. “É preciso compreender esse gargalo. Houve melhora, mas não dá para saber de quanto, porque não há um censo disso ainda.”
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