Economia quer facilitar venda de terrenos litorâneos da União pela metade do preço

Os terrenos de marinha estão localizados no litoral, em uma faixa de cerca de 30 metros a partir da linha da maré alta

O Ministério da Economia elabora uma proposta para automatizar a demarcação dos terrenos de marinha, localizados na faixa litorânea e nas margens de rios e lagos, e facilitar a venda das áreas aos atuais ocupantes, com desconto de 50% sobre o valor venal do imóvel.
A medida é uma tentativa de contornar uma PEC (proposta de emenda à Constituição) aprovada a jato no plenário da Câmara dos Deputados no fim de fevereiro e que previa uma privatização forçada desses terrenos, sobretudo na costa brasileira. O texto, criticado por técnicos e ambientalistas, também abria brechas para a grilagem.
A votação da PEC, defendida pelo presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), se deu no mesmo contexto das articulações para aprovar a liberação dos jogos de azar. Defensores das iniciativas tinham a expectativa de turbinar essa atividade, sobretudo em cassinos ou resorts no litoral brasileiro.
Para isso, julgavam necessário aprovar a PEC para garantir a hotéis e outros empreendimentos o direito de propriedade sobre os terrenos na costa brasileira, encerrando controvérsias e disputas judiciais. A proposta agora tramita no Senado Federal.
O governo Jair Bolsonaro (PL) é defensor da privatização de áreas públicas em praias do país para estimular o investimento de grupos hoteleiros e o recebimento de cruzeiros internacionais. Internamente, fala-se que é possível construir diferentes Cancúns —destino mexicano famoso pelos resorts.
No entanto, a avaliação é de que a aprovação da PEC não só é dispensável, mas também acabaria agravando a insegurança jurídica. Empresas como a Vale, que operam terminais portuários privados, seriam obrigadas a desembolsar cifras bilionárias para comprar as áreas.
Na tentativa de sepultar a PEC de vez, a proposta em discussão no governo é editar uma MP (medida provisória) ou enviar um projeto de lei simplificando as regras, sem impor nenhuma obrigação aos atuais usuários. A compra seria feita por aqueles que tiverem interesse na transação.
A nova ideia, porém, segue enfrentando críticas de parlamentares ligados à pauta ambiental. O deputado Rodrigo Agostinho (PSB-SP), que foi contra a PEC por considerá-la uma ameaça a áreas ambientalmente sensíveis, afirma que a automatização pode acabar regularizando “muitas invasões de terras públicas”, privatizar praias e causar conflitos. Ele diz ser crítico à nova proposta.
Os terrenos de marinha estão localizados no litoral, em uma faixa de cerca de 30 metros a partir da linha da maré alta ou em margens de rios e lagoas que sofrem influência de marés. Eles são de propriedade da União, e seus ocupantes pagam taxas ao governo federal pelo uso do imóvel.
Hoje, segundo o governo, os usuários já podem adquirir os terrenos, mas o processo é lento. A demarcação é feita de forma manual, e não há padronização em torno do valor de referência para a venda do imóvel pela União.
A proposta em elaboração na Economia autoriza o governo a usar ferramentas eletrônicas que possibilitem a demarcação instantânea. O secretário especial de Desestatização, Desinvestimento e Mercados, Diogo Mac Cord, diz à Folha que é possível simplificar a demarcação com o uso de algoritmos e levantamentos geológicos que permitam traçar a faixa que delimita os terrenos de marinha.
“Eu entendo o problema. É um calo que precisa ser curado, a falta do direito de propriedade”, afirma Mac Cord.
Apesar das críticas à PEC, ele admite que o Congresso conseguiu “colocar o bode na sala” e trazer o assunto para o centro do debate. “O problema é a velocidade de demarcação e a avaliação do valor do imóvel”, diz o secretário.
Em vez de contratar um serviço de avaliação, que poderia ser custoso e demorado, a proposta do governo é usar como referência o valor venal do imóvel. Esse é o preço do bem estimado pelo município e que serve de base de cálculo para a cobrança de tributos, como o IPTU (Imposto Predial e Territorial Urbano).
Questionado sobre o risco de defasagem dessas estimativas –e consequentemente vendas subfaturadas–, Mac Cord afirma que as prefeituras não têm interesse em manter os valores venais desatualizados, pois isso prejudica a arrecadação municipal. Além disso, 20% do valor da venda iria para o município onde está localizado o terreno de marinha.
A proposta ainda prevê um desconto de 50% sobre o valor venal na venda realizada aos ocupantes de área federal “regularmente inscritos e adimplentes”, segundo o texto. O desconto é maior que os 25% praticados atualmente.
As regras facilitadoras valeriam por dois anos a partir da publicação da lei ou a partir da data de demarcação do terreno. Atuais ocupantes regulares das áreas, já cadastrados pelo governo, também poderiam acessar essas condições.
O texto ainda está em discussão interna no governo, entre Ministério da Economia, Casa Civil e Secretaria de Governo. Não há um prazo para que o projeto ou a MP sejam apresentados.
Em paralelo, o governo tem dialogado com os senadores para evitar que a PEC avance na Casa.
Como mostrou a Folha, a PEC mantém sob domínio da União áreas usadas pelo serviço público federal, unidades ambientais federais e terrenos não ocupados, mas autoriza a transferência a estados, municípios ou proprietários e usuários dessas áreas já inscritos na SPU (Secretaria de Patrimônio da União).
Em um dos artigos de maior risco, na avaliação dos técnicos, a PEC permitiria também a venda aos não inscritos, mas que tenham ocupado o local pelo menos cinco anos antes da publicação da emenda constitucional –o que abre brechas para a grilagem, quando há ocupação irregular de terras públicas mediante uso de escrituras falsas.
Outro problema da PEC é a previsão de cessão onerosa dessas áreas pela União, ou seja, seus ocupantes serão obrigados a comprar o terreno.
A medida é considerada problemática, pois envolve um prazo de até dois anos para que a compra seja concretizada pelos ocupantes, à exceção de áreas ocupadas com função social –vilas de pescadores, comunidades quilombolas, por exemplo–, estados, municípios e concessionárias, casos em que a transferência seria gratuita.
Além de impor custos aos ocupantes privados das áreas, a PEC não traz nenhuma previsão para o caso de o pagamento não ser efetivado nesse período. Na prática, eles poderiam alegar que a União perdeu o prazo para efetuar a cobrança.
Neste caso, os técnicos afirmam que seria a “maior transferência de renda da história”, uma vez que o valor das áreas envolvidas pode chegar a R$ 1 trilhão. Os beneficiários tendem a ser pessoas de alta renda, que ocupam terrenos à beira-mar.

ENTENDA

Economia quer facilitar venda de terrenos de marinha
Onde ficam? No litoral, em uma faixa de cerca de 30 metros a partir da linha da maré alta ou em margens de rios e lagoas que sofrem influência de marés. Eles são de propriedade da União, e seus ocupantes pagam taxas ao governo federal
Qual é a proposta? Facilitar a venda das áreas aos atuais ocupantes, com desconto de 50% sobre o valor venal do imóvel
Por que? A medida é uma tentativa da área econômica de esvaziar PEC em tramitação no Congresso que prevê uma privatização forçada desses terrenos, abrindo também brecha para grilagem e insegurança jurídica
Como é hoje? Os usuários já podem adquirir os terrenos, mas o processo é lento. A demarcação é feita de forma manual, e não há padronização em torno do valor de referência para a venda do imóvel
Como ficaria? Governo usaria ferramentas eletrônicas que possibilitem a demarcação instantânea. Em vez de contratar um serviço de avaliação, seria considerado como referência o valor venal do imóvel
Quando isso pode sair do papel? Não há prazo. O texto ainda está em discussão interna no governo, entre Economia, Casa Civil e Secretaria de Governo.

Idiana Tomazelli
Brasília, DF
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