Bolsonaro planeja mais R$ 1,2 bi para trator e ignora fila de famílias carentes




Após direcionar R$ 89,8 milhões para a compra de tratores com recursos que deveriam ir para o combate à Covid-19, o governo Jair Bolsonaro (PL) busca intensificar essa iniciativa e planeja investir R$ 1,2 bilhão para a aquisição de novos maquinários. Por outro lado, pedido da área técnica do governo para apoiar 45 mil famílias pobres tem sido ignorado.



A Folha de S.Paulo revelou no domingo (22) que o Ministério da Cidadania comprou 247 tratores e outras máquinas agrícolas usando para tanto recursos que deveriam ser direcionados para mitigar o impacto da pandemia em comunidades pobres.


A ação envolveu drible a determinação do TCU (Tribunal de Contas da União), ausência de critérios técnicos, gestão para acelerar pagamentos e criação, por portaria, de uma "estrutura de mecanização" no Sistema de Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, em especial no programa chamado Fomento Rural (relacionado à agricultura familiar).


O novo pacote bilionário também tem sido tocado pelo Ministério da Cidadania, pasta voltada a assistência e políticas sociais, sem tradição de compras como essa. Os tratores ainda são vinculados a ações com foco em famílias na zona rural em situação de pobreza e extrema pobreza -contexto estranho ao uso de maquinários de grande porte.


Essa "estrutura de mecanização", criada pela portaria de 22 de março, é usada como justificativa para o novo desígnio bilionário. A portaria normatiza quais máquinas podem ser compradas, como também a utilização delas.


Documento de Formalização de Demanda, de 30 de março, aponta para a compra de 2.900 maquinários. São citadas 600 escavadeiras hidráulicas, 500 motoniveladoras, 1.200 pá-carregadeiras e 600 retroescavadeiras. Os equipamentos custarão R$ 1,2 bilhão.


A inclusão desse gasto no Plano Anual de Contratações do Ministério da Cidadania também é prevista em um despacho incluído no sistema eletrônico do governo na madrugada de 16 maio. Os maquinários, diz o documento obtido pela Folha, seriam "necessários para plenamente atender Estrutura de Mecanização Agrícola no Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional [MAG-SAN]".


Enquanto planeja gastar com maquinários, a pasta ignora necessidade de incluir mais 45 mil famílias de extrema pobreza do campo em iniciativa de transferência de recursos diretos. A demanda pela inclusão foi descrita pela área técnica da pasta e compõe uma mesma nota técnica considerada no pedido do ministério por R$ 1,2 bilhão para tratores.


Essa ação de transferência direta custaria R$ 108 milhões e não foi atendida até agora. Essas ações são uma das vertentes de atuação do Fomento Rural, que se soma à assistência técnica oferecida às famílias.


O número de beneficiados do Fomento Rural desabou sob o governo Bolsonaro. Foram atendidas 18,8 mil famílias em 2018, último ano da gestão Michel Temer (MDB). O quadro passou para 8,9 mil no ano passado.


Em 2014, no governo Dilma Rousseff (PT), receberam o recurso 93,4 mil famílias. O programa paga entre R$ 2,4 mil e R$ 3.000 para cada família uma única vez.


A portaria de março relaciona a infraestrutura mecânica com o Fomento Rural e atendimento a famílias inscritas no CadÚnico (Cadastro Único). Trata-se do registro federal de famílias em situação de pobreza usado para programas sociais.


"O objetivo específico do MAG-SAN é prover a infraestrutura mecânica para famílias inscritas no CadÚnico e que possuam domicílio rural, com vistas à estruturação das atividades produtivas e contribuir para o incremento da renda e do patrimônio no âmbito dos programas e ações que compõem o Sisan [Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional], especialmente por meio do Programa Fomento Rural", diz a portaria, assinada pelo ex-ministro João Roma (PL). Ele é pré-candidato ao governo da Bahia com o apoio de Bolsonaro.


A previsão é que as máquinas fiquem nas prefeituras, que as receberão por doação da União. Não há informações sobre como as famílias pobres serão atendidas.


O professor Sílvio Porto, da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, explica que investir em maquinários desse tipo é totalmente incoerente com as necessidades das famílias do CadÚnico e com as realidades locais. O próprio espaço agrícola que essas famílias dispõem, diz ele, nem sequer comporta esses equipamentos.


Porto afirma que, com R$ 1 bilhão, seria possível atuar de modo mais efetivo para mudar a realidade de insegurança alimentar na zona rural do país. "A Conab [Companhia Nacional de Abastecimento] recebeu no ano passado R$ 330 milhões em demandas de organizações sociais da agricultura familiar, mas não foram atendidos com orçamento do governo", diz.


Os tratores tornaram-se no governo atual um dos principais símbolos de clientelismo político. Seja através de emendas parlamentares ou, como mostrou a Folha, em compras feitas com recursos próprios do governo.


Questionado, o Ministério da Cidadania não respondeu sobre os critérios que respaldam a necessidade de 2.900 máquinas e de onde viria o recurso. O Ministério da Economia se negou a esclarecer se o pedido de crédito chegou à área econômica.


No caso dos R$ 89,9 milhões, já empenhados para tratores no apagar das luzes de 2021, o recurso saiu de sobras com a extinção do Bolsa Família e criação do Auxílio Brasil. No entanto, o TCU havia determinado que o dinheiro fosse usado exclusivamente para o custeio de despesas com enfrentamento da Covid-19, o que não foi atendido.


O Ministério da Cidadania não pretende, também no plano das aquisições de R$ 1,2 bilhão, realizar nova licitação. O objetivo é aderir a atas de registro de preços do Ministério do Desenvolvimento Regional em nome da empresa chinesa XCMG, cuja sede no Brasil fica em Pouso Alegre (MG).


As atas do Desenvolvimento Regional com a XCMG foram usadas por políticos aliados para mandar equipamentos a suas bases eleitorais. Essas operações se valeram das chamadas emendas de relator, cuja destinação são comandadas por líderes do centrão.



A diferença com a compra do Ministério da Cidadania foi a digital do governo federal. Os R$ 89,9 milhões são do próprio orçamento da União.


Para essa aquisição, a pasta não definiu os municípios que seriam beneficiados. Só foi estabelecida a quantidade de equipamentos por estado. O maior beneficiado é a Bahia, estado do próprio ex-ministro João Roma.Roma negou irregularidades.



Parlamentares pediram investigação sobre o processo de compra de tratores com recursos que deveriam ser destinados para famílias pobres, no contexto da pandemia do novo coronavírus.


O líder da oposição no Senado, Randolfe Rodrigues (Rede-AP), encaminhou na segunda-feira (23) uma representação ao procurador-geral da República, Augusto Aras, pedindo a investigação de denúncias recentes contra o governo, entre elas a compra de tratores. Randolfe cita na representação a reportagem da Folha de S.Paulo.


A representação menciona a existência de um "pernicioso patrimonialismo no âmbito do governo federal" e que o objetivo do aparente caso de corrupção é o ganho de capital político do presidente da República.


"Estamos observando a instalação de um caos no Brasil para que Bolsonaro privilegie seus cúmplices. Comprar tratores com o dinheiro que deveria combater os efeitos da pandemia mostra quais foram as prioridades do governo em meio a crise sanitária no país", disse o senador. "Não há critérios técnicos, somente políticos".


A deputada federal Natália Bonavides (PT-RN) também acionou o Ministério Público Federal e ingressou com uma representação no TCU, solicitando a investigação do caso. A parlamentar lembra no documento que o Roma é pré-candidato e por isso pede que a eventual relação entre os fatos seja apurada.


"Bolsonaro retirou recursos do auxílio Brasil para pagar o centrão. Dinheiro que deveria ir para famílias em situação de vulnerabilidade", afirma a parlamentar.
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