Ao falar dos amigos mortos por consequência da Covid-19, é como se Sérgio Rosa, há 41 anos nos Demônios da Garoa, pedisse licença à tristeza --ao dizer uma frase mais dolorosa, ele logo parece compensar com uma outra de esperança.
A pandemia foi cruel com o grupo: nos últimos dois anos, eles perderam o companheiro Izael Caldeira, que tocava timba (instrumento de percussão), e o empresário, Odilon Cardoso.
"Izael morreu em consequência da Covid-19 em 2021, era nosso companheiro desde 1999 e foi uma grande presença na trajetória do grupo. A trajetória do artista é sempre cheia de altos e baixos, mas a gente prefere guardar os momentos bons", diz.
Odilon, morto em 2020, foi empresário do conjunto por quase 30 anos e é definido por Rosa como "a grande engrenagem do grupo". "A gente sabe que é difícil, ele também faz muita falta. Com a sua morte, a filha dele, Thaís, assumiu o posto."
Ele diz que, após os percalços, o grupo espera continuar retomando as atividades. "Infelizmente, não dá para voltar no tempo, mas somos todos operários da música e eles também se sentiam assim."
Na sexta-feira (10), o país atingiu a marca de 668.007 vidas perdidas e a 31.416.072 pessoas infectadas, de acordo com levantamento do consórcio dos veículos de imprensa. Os números melhoraram a partir da vacinação, mas as últimas semanas registraram um aumento de novos casos.
A perda substancial de vidas, além de enlutar famílias se traduz em menos rendimentos. De março de 2020 até março de 2022, a perda para o país em capital humano é de R$ 16,5 bilhões por ano, ao se considerar o rendimento mensal vindo do trabalho das vítimas que tinham até 69 anos e a renda dos idosos a partir dos 70 anos.
A conta foi feita pelos pesquisadores Claudio Considera e Juliana Trece, do FGV Ibre (Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas) e estima quanto essas pessoas ganhariam em vida.
Para esses cálculos, foram usados dados da Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) e outras fontes, como a Síntese de Indicadores Sociais, também do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).
Não fosse a pandemia, esses trabalhadores que tiveram suas vidas abreviadas conseguiriam um rendimento total de R$ 285,9 bilhões ao longo de suas carreiras, considerando as projeções do IBGE para a expectativa de vida, ainda segundo os pesquisadores.
"Ele era o meu melhor amigo", diz o professor da FAU-USP (Faculdade de Arquitetura da Universidade de Paulo) Fábio Mariz Gonçalves, ao se lembrar do colega Silvio Macedo, que se foi em 2021. "Ele era um professor muito apaixonado pelo magistério, poderia ter se aposentado há 15 anos."
Referência no ensino do paisagismo no país, Macedo formou professores de outras universidades e ajudou a constituir uma rede de pesquisadores em sua área, começou a dar aulas em 1967. Vivia o cotidiano acadêmico com tanto fervor, que cuidou do projeto paisagístico da Praça do Relógio, no campus, nadava todos os dias na USP e conheceu sua mulher no coral da universidade.
"Em 2017, ele sofreu um AVC, que prejudicou sua mobilidade. Acabei assumindo a orientação de parte dos seus alunos. Mas ele seguiu dando aulas assim mesmo. Morreu cerca de um mês antes de poder receber a primeira dose da vacina e deixou um vazio que nunca vamos conseguir preencher."
"A forma como o Brasil lidou com a pandemia foi uma desgraça, quando se pensa que essa é uma doença que nos alcança facilmente e ainda não se sabe quais são todos os efeitos colaterais e de longo prazo", diz Considera, do Ibre.
Ele complementa que os cálculos levam em conta o rendimento que se perdeu com essas mortes, mas há outros aspectos importantes, como o conhecimento que cada pessoa deixará de passar, uma bagagem formada durante toda a vida.
"Uma amiga de 40 anos, especialista em estatísticas, morreu no início da pandemia, tinha boa saúde. Perdeu-se a renda de uma família e os ensinamentos que ela deixa de passar. Nós, que ficamos, não podemos mais contar com o conhecimento dela que era tão importante para o nosso trabalho."
PERDAS DA PANDEMIA VÃO ALÉM DOS NÚMEROS
As marcas deixadas pela crise sanitária na economia são visíveis. Na última semana, um relatório da Rede Penssan (Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional) apontou que 33 milhões de pessoas passam fome no Brasil, um patamar maior do que há três décadas.
Também na semana passada, um levantamento do IBGE, que considera fontes de recursos além do trabalho, como benefícios de programas sociais, apontou que os 5% da população com menor renda tiveram queda de 33,9% no rendimento médio de 2020 para 2021.
O Ballet Manguinhos, criado há dez anos em uma comunidade do Rio de Janeiro, perdeu sua fundadora no ano passado, a educadora física Daiana Ferreira. Neste ano, termina o contrato com uma associação norte-americana firmado por ela, e o projeto agora busca um novo patrocinador para não fechar.
Em um cenário de distanciamento social e trabalho remoto como privilégios de parte da população, a Covid-19 matou mais de 90 defensores de direitos humanos apenas no primeiro ano da pandemia, segundo um levantamento da organização Justiça Global.
Entre eles, estavam pessoas que participavam na luta pela terra e por territórios, como o cacique Aritana Yawalapiti, e a ativista pelos direitos LGBTQIA+ Amanda Marfree, que se foi em 2020.
"Sabe aquelas perdas difíceis de entender? Perdemos uma profissional exemplar e uma pessoa fora do comum, que usava sua experiência de vida para mostrar a outras mulheres trans a possibilidade de vencer na vida", diz Marcella Montteiro, amiga de Amanda e que trabalhou com ela no CRD (Centro de Referência e Defesa da Diversidade).
Amanda e ela participaram da primeira turma do programa Transcidadania, de reintegração social e resgate da cidadania para travestis, mulheres e homens trans em situação de vulnerabilidade.
Com ela, o centro perdeu uma das pontes para se aproximar da comunidade, lembra Eduardo Barbosa, diretor do CRD. "Ela se tornou uma orientadora socioeducativa conhecida e ajudou várias pessoas durante a pandemia, mas acabou não sobrevivendo a esse momento terrível."
CAPITAL HUMANO LEVARÁ TEMPO PARA SER RECONSTRUÍDO
Os anos de pandemia também foram cruéis no cotidiano das empresas --sobretudo as de menor porte. A crise provocada pelo coronavírus chegou a afetar o faturamento de 89% dos pequenos negócios em 2021, segundo pesquisa FGV/Sebrae.
Para a cearense C.S., 34, a morte do noivo, Caio, se materializou quando a empresa de instalação de telas de segurança que ele criou fechou as portas. "Era o grande sonho dele, era dali que tirávamos os recursos para pagar a prestação da nossa festa de casamento, mas não deu tempo de nos casarmos."
Com a morte de Caio, no fim de 2020, o pai e o irmão dele chegaram a assumir o negócio, mas a falta de experiência dos dois pesou e a empresa fechou em alguns meses.
A marca de roupas e toalhas criada por André Luis, ativista da periferia da Grande São Paulo, escapou do mesmo destino. Com a morte dele, em janeiro deste ano, a Estilo Black e a Estilo Toalhas foram assumidas por sua mãe e irmã.
André também era cofundador da ONG Taboafro. Ele trabalhava no fortalecimento da população negra e das religiões de matrizes africanas em Taboão da Serra, na Grande São Paulo, ficaram a intensidade e a dedicação, conta outro fundador da organização, Clayton Luiz.
"Antes, a militância preta era sazonal, conseguimos instituir na cidade um calendário regular. O sonho dele, de montar uma casa de acolhimento para pessoas vulneráveis, sobretudo ligadas às causas que nós defendemos, virou nossa meta. E quando ela ficar pronta, vai levar o nome dele."
O nome de Ana Marangoni, entre os demais geógrafos da USP, costuma ser associado a termos como "erudita" e "amável". Talvez suas origens, no interior de São Paulo, ajudem a explicar o jeito carinhoso e humilde, apesar dos mais de 60 anos dedicados à profissão, arrisca o colega Yuri Tavares Rocha.
"Além de ter sido professora da universidade, ela tinha uma atuação grande no planejamento governamental, assessorou diversos municípios em seus planos diretores, atuou em prefeituras e órgãos. Era uma referência para todos nós", conta.
A imagem que ele faz ao tentar calcular a perda da amiga, que se foi em 2021, é a de uma biblioteca que, de forma repentina, foi trancada e é como se ninguém soubesse como destrancá-la. "Ela tinha a preocupação de fazer com que os alunos pudessem aplicar o conhecimento na vida profissional. Essa lacuna não se preenche, mas ao menos ela pôde orientar muitas pessoas."
Pessoas são insubstituíveis e quando são indivíduos que tiveram formações peculiares, isso se torna ainda mais visível, diz Helena Nader, presidente da ABC (Academia Brasileira de Ciências).
Ela complementa que as equipes de pesquisadores, acadêmicos e cientistas do Brasil já são reduzidas e devem levar tempo para se recuperar desse baque. "Vamos ter de formar novos capitais humanos e para manter a ciência viva, apesar de todos os esforços recentes em contrário do governo brasileiro."
Na quinta-feira (9), ao lado do presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, durante a Cúpulas das Américas, Bolsonaro voltou a culpar as medidas de distanciamento pelos problemas econômicos.
Especialistas, no entanto, reforçam que o governo investiu em um falso dilema entre salvar a economia ou preservar vidas. Ainda em março de 2021, mais de 1.500 economistas assinaram uma carta pedindo medidas de distanciamento e uma ação nacional coordenada. "A experiência mostrou que mesmo países que optaram inicialmente por evitar o lockdown terminaram por adotá-lo", dizia o texto.
O relatório da CPI da Covid, de outubro do ano passado, também apontou a falta de atuação do governo para organizar o combate da pandemia, dando destaque à demora na compra de imunizantes --segundo a CPI, "a mais grave omissão do governo federal foi o atraso deliberado na compra de vacinas".