SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Quiseram os deuses da guerra que o aniversário dos primeiros seis meses do sangrento conflito na Ucrânia, que ocorre nesta quarta (24), coincidisse com o que deveria ser a celebração dos 31 anos de Kiev como capital de um Estado independente.
Assim como em 1991, os ucranianos estão no centro de um evento com repercussões mundiais. Naquele ano, sua separação da União Soviética foi o golpe final nas pretensões de Mikhail Gorbatchov de manter o combalido império comunista unido sob o comando da Rússia.
A vitória americana na Guerra Fria foi acompanhada de fatos extraordinários: o colapso do milagre econômico japonês, o início da escalada chinesa à posição de desafiante global de Washington, a assinatura do tratado que estruturou a União Europeia e a expulsão de Saddam Hussein do Iraque, gestando o jihadismo do século 21.
A "nova ordem mundial", proclamada em um discurso do presidente George Bush pai, evoluiu desde então, para encontrar um novo ponto de inflexão novamente nos campos ucranianos. A invasão promovida por Vladimir Putin está longe de um fim aparente, mas ele parece determinado a cumprir sua promessa de remendar "a maior catástrofe geopolítica do século 20".
Usualmente analistas citam só a primeira parte da frase do russo, proferida há distantes 17 anos sobre o fim da União Soviética. A ideia de restauração do regime comunista sempre foi negada por Putin; já a recomposição de fronteiras que lhe deem profundidade estratégica e discurso doméstico está a pleno vapor.
A chave, contudo, está na segunda parte da fala, que costuma não ser avaliada.
"Para o povo russo, foi uma verdadeira tragédia. Dezenas de milhões de nossos compatriotas se encontraram além dos limites do território russo", disse. Pule para a guerra na Geórgia em 2008, a anexação da Crimeia e a guerra civil no Donbass seis anos depois.
Isso sozinho não explica, contudo, o enorme risco geopolítico corrido por Putin ao travar um conflito ao estilo Segunda Guerra Mundial, confiando mais em força bruta do que em táticas modernas. Até aqui, ele dribla com eficácia o efeito das pesadas sanções ocidentais, que isolaram os russos do mundo.
Isso dito, o cantado golpe de elites insatisfeitas, ou da linha dura militar, não deu as caras. Putin, hoje, mantém o controle total sobre o tecido político de seu país, coibindo dissensos aqui e ali.
Um dos fatores para isso é justamente o efeito colateral das sanções: elas alimentam a ideia de Putin de uma Rússia sob ataque, não por acaso pedra fundamental de sua persona política, que misturou um culto à resistência soviética aos alemães a elementos nacionalistas e da religião ortodoxa. A acusação de nazismo impingida a Kiev nada tem de casual.
Não que não haja impactos econômicos, como a previsão de queda de 6% no PIB deste ano feita pelo Fundo Monetário Internacional sugere, mas a hecatombe presumida não se concretizou. O problema é o longo prazo, com a falta de acesso a tecnologias sensíveis ocidentais e o fechamento do mercado europeu de energia, vital para a Rússia no caso do gás.
Putin conta aqui, como Napoleão e Stálin antes dele contra inimigos, com o general inverno, agora em versão continental. O frio que se avizinha aos poucos na Europa poderá romper ainda mais a paciência popular com o apoio de governos à guerra.
Ainda não há alternativas viáveis para substituir a contento o gás natural russo.
Isso leva à tentadora conclusão de que a guerra pode ter seus dias contados, o que é ilusório por ora pois a Otan (aliança militar ocidental) a essa altura não pode se permitir mais humilhação ante os russos. O clube mostrou força e se expandiu, anunciando a entrada de Finlândia e Suécia, exatamente na contramão de um dos desejos estratégicos do Kremlin.
Mas, na prática, não pôde impedir a invasão e a continuidade do conflito. Há grande apoio militar a Kiev, o que ajudou a resistência a segurar as tropas russas que chegaram à capital. Só os Estados Unidos já deram mais de US$ 10 bilhões em armas.
Isso é mais do que o dobro do orçamento militar inteiro do governo de Volodimir Zelenski, durante o ano passado.
Isso tudo começa a ser questionado na Europa, a queda do governo italiano sendo exemplo, restando saber como um Congresso americano comandando pelos republicanos próximos do ex-presidente Donald Trump reagirá.
Há também a realidade no campo de batalha, que vive já sua terceira grande fase. Ela parece estática, mas vê a tática russa mais tradicional, de atrito, ganhar lentamente o leste do país. No sul, a prometida contraofensiva ucraniana se limitou até aqui a atrapalhar as linhas de suprimento russas, sem avanços.
Ambos os lados do conflito ganham tempo, ao fim.
Putin reforça posições no sul e avança no leste, enquanto Zelenski dá golpes mais simbólicos do que efetivos: ataques a posições russas na Crimeia, o que parece ter comprado de brinde a acusação de ter matado a filha do ultranacionalista Aleksandr Dugin.
No centro desse vaivém está a usina nuclear de Zaporíjia, ocupada por russos mas operada por ucranianos. Ambos os lados se acusam de travar perigosos combates em torno do complexo, arriscando uma nova Tchernóbil, para ficar com fantasmas do passado. Um cessar-fogo eventual pode passar pela questão, mas o fato é que ninguém sabe onde Putin vai parar.
O custo humano é impagável. Os mortos estão na casa incerta das dezenas de milhares, e cerca de um terço da população ucraniana teve de deixar suas casas, muitas vezes para fora do país. Os horrores de Mariupol, palco do mais brutal cerco até aqui, viraram contos cautelares sobre a natureza da guerra.
Assim como há 31 anos, à balbúrdia no Leste Europeu acumulam-se fatores externos. O conflito já é parte da Guerra Fria 2.0 entre China e EUA, com Pequim firme ao lado de Moscou, buscando entender se há espaço para uma nova ordem mundial como Putin e Xi Jinping vendem.
A crise em torno de Taiwan, exacerbada pela visita de Nancy Pelosi à ilha reivindicada por Xi, aumentou a sensação de interligação entre os desafios ao Ocidente.
É um fato, como voos de bombardeiros russos próximo ao Japão e a nova doutrina da Otan lembram, mas a ideia de uma escalada global do conflito esbarra para começar nas dificuldades econômicas da China, que teoricamente não pode se dar ao luxo de combater seus maiores parceiros comerciais.
A Terceira Guerra Mundial está mais presente do que nunca, sendo por ora é uma sombra. Mas as peças se movem, sugerindo novos blocos sobrepostos de poder.
O oportunismo da Índia em ser aliada dos EUA no grupo anti-China Quad e uma das válvulas de escape da economia russa ao mesmo tempo mostra a complexidade da engrenagem de um redesenho mundial que não tem contornos claros, mas está em curso.